O Espaço Ferroviário Único Europeu
A liberalização do transporte de passageiros é o culminar de um longo processo legislativo da União Europeia - composto por regulamentos e diretivas, todas transpostas para a ordem jurídica nacional - sobretudo assente na emissão dos diversos “Pacotes Ferroviários”, desde 2001. A saber:
- O 1.º Pacote Ferroviário de 2001 estabeleceu a separação da gestão da infraestrutura e dos operadores; critérios técnicos de segurança, de qualidade e licenciamento de empresas e profissionais e modifica diretivas de 1991 e 1995 que já preconizavam a liberalização do setor ferroviário e o estabelecimento de um Espaço Único Europeu dos Transportes;
- O 2.º Pacote Ferroviário de 2004 estabeleceu uma maior harmonização nos requisitos de segurança, interoperabilidade do sistema convencional, requisitos comuns para a alta velocidade e liberalizou o transporte ferroviário de mercadorias;
- O 3.º Pacote Ferroviário de 2007 estabeleceu o livre acesso ao transporte internacional ferroviário de passageiros, criou requisitos comuns de certificação dos maquinistas e criou regras relativas a direitos dos passageiros ferroviários;
- Em 2010, o 1.º Pacote foi alterado no sentido estabelecer normas sobre o financiamento e gestão de infraestrutura; acesso a instalações ferroviárias e independência e competência dos órgãos reguladores;
- O 4.º Pacote Ferroviário de 2013 que liberaliza o mercado, impõe requisitos comuns de segurança e interoperabilidade, bem como normalização das contas das empresas de caminhos de ferro e estabelece mecanismos de contratualização de serviços públicos ferroviários.
Estas iniciativas, baseadas em estudos abrangentes a nível europeu e com os contributos nacionais, pretendem promover a concorrência nos mercados de serviços de transporte ferroviário de passageiros e mercadorias e incentivar os operadores ferroviários a responder melhor às necessidades dos clientes de toda a União Europeia, a melhorar a qualidade dos seus serviços e a sua relação custo-eficácia, tratando-se de operadores públicos ou privados.
Os resultados já obtidos permitem concluir pelo sucesso da harmonização de condições técnicas e sociais, facilitando a circulação de pessoas e bens, sem restrições, criando oportunidades económicas para todas as empresas e oferecendo mais possibilidades aos cidadãos na União Europeia.
No entanto, persistem diversos desafios já identificados pela Comissão Europeia, e estão sobretudo relacionados com aplicação insuficiente da legislação europeia, o que pode trazer impactos negativos significativos no funcionamento eficaz, eficiente e transparente dos mercados, nacionais e europeus.
Os desafios estão relacionados com a garantia do efetivo acesso de novos operadores ao mercado, mas também quando à implementação de adequados contratos de serviço público para prestadores de serviços de interesse económico geral, com critérios claros e objetivos de definição de obrigações de serviço público, no sentido de maximizar recursos públicos e melhor responder às necessidades dos passageiros e da população e atividades económicas que, direta ou indiretamente, podem beneficiar da existência de serviços ferroviários.
O 4.º Pacote Ferroviário composto, na sua vertente de mercado, pela Diretiva (UE) 2016/2370 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de dezembro de 2016 e pelo Regulamento (EU) 2016/2338, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de dezembro, foi transposto para a ordem jurídica interna, designadamente, pelo Decreto-Lei n.º 124-A/2018, de 31 de dezembro, que também conformou o regime jurídico aplicável à CP–Comboios de Portugal, alinhando-o quanto às exigências legais inerentes à contratualização do serviço de transporte público de passageiros e ainda se procedeu a melhorias no regime aplicável ao direito dos passageiros no setor ferroviário, aliás em linha com as recomendações e propostas legislativas da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT).
Assim, com o 4.º pacote ferroviário, o livre acesso às redes ferroviárias dos Estados-Membros oferece alternativas de (i) Acesso direto a linha, troço ou região, competindo com outros operadores pelos canais horários disponíveis na infraestrutura e (ii) competição por contratos de serviço público, com obrigações de serviço público, com direitos exclusivos numa linha, troço ou região, naturalmente sem prejuízo da possibilidade das autoridades de transportes competentes deterem operadores próprios que prestem serviços ferroviários.
No que se refere ao acesso livre, desde 1 de janeiro 2019 que qualquer operador pode solicitar o acesso à infraestrutura ferroviária nacional, desde que (i) obtenha as adequadas licenças de acessos à atividade e certificados de segurança junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (ii) Notifique a AMT do pedido de acesso à rede, indicando aquelas licenças, itinerários, modelos de exploração pretendidos, características do material circulante, etc., conforme formulário tipo aprovado pela AMT (iii) solicite junto do gestor da infraestrutura - IP–Infraestruturas de Portugal - os canais horários pretendidos.
O gestor da infraestrutura deverá aferir da disponibilidade via e das estações, tendo em atenção o Diretório de Rede - documento previsto na legislação nacional e europeia, que é validado todos os anos pela AMT, com antecedência de 2 anos - que contém, entre outros, as caraterísticas da rede ferroviária nacional, enuncia as condições de acesso e utilização, descreve os serviços que a IP presta às empresas de transporte ferroviário e divulga o tarifário.
Contudo, se existir um contrato de serviço público que abranja um trajeto em concreto e o acesso por um terceiro operador colocar em causa o equilíbrio económico do referido contrato, o operador abrangido pelo contrato pode solicitar à AMT a realização de um teste económico de aferição daqueles impactos, de acordo com o Regulamento de Execução (UE) 2018/1795 da Comissão, de 20 de novembro de 2018 e com o regulamento próprio da AMT.
Nesse caso, a AMT deverá avaliar, principalmente, e de forma objetiva: (i) Impactos negativos para o operador quanto à rentabilidade dos serviços prestados ao abrigo do contrato de serviço público; (ii) Impactos sobre as compensações a pagar por autoridade de transportes; (iii) Benefícios para os consumidores do novo serviço de transporte ferroviário; (iv) Impactos no desempenho e utilização da rede.
O efetivo acesso à rede ferroviária nacional depende assim da avaliação do pedido do novo operador pelo gestor de infraestrutura (questões de capacidade da infraestrutura), podendo a entrada daquele operador ser efetuada com ou sem restrições, tendo em conta que a legislação europeia entende ser de acautelar os serviços públicos de transporte de passageiros que constituam serviços de interesse económico geral, por poderem implicar o dispêndio de recursos públicos e suprirem necessidades essenciais da população, ao contrário de serviços liberalizados que poderão realizados no âmbito do risco e interesse próprio de operadores comerciais.
De referir que o acesso nunca poderá ser imediato, tendo em conta aqueles procedimentos, mas também porque com o funcionamento da rede é aprovado com bastante antecedência por implicar a articulação de milhares de serviços de transporte (mercadorias e passageiros) em diversas linhas, designadamente por necessidade de salvaguardar a segurança da circulação no sistema ferroviário.
Aliás, tal explica que a Diretiva (UE) 2016/2370 tenha permitido a apresentação de pedidos de acesso a partir de janeiro de 2019, mas apenas para ter efeitos nos horários dos serviços em 2020 (e assim sucessivamente). Após a autorização de entrada na rede, a legislação prevê a celebração de um contrato de utilização da infraestrutura entre o operador e o gestor da infraestrutura, contendo o regime de exploração dos serviços ferroviários, incluindo troços e estações utilizadas, obrigações de reporte de informação acerca da exploração dos serviços ferroviários, designadamente quanto a horários e títulos e tarifas de transporte disponibilizados.
De referir que, até à data, a AMT não recebeu qualquer pedido de acesso à rede ferroviária nacional.
No que se tange à competição por contratos, encontra-se na disponibilidade dos Estados-membros, de acordo com a legislação europeia e nacional e no estrito cumprimento dos seus requisitos, atribuir a operadores internos a concessão de linhas ou submeter, parcial ou totalmente, linhas existentes à concorrência, podendo estar em causa não apenas a exploração como a construção/reabilitação de infraestrutura.
De qualquer modo, mesmo quando existam contratos de concessão ou prestação de serviços públicos, na sequência de procedimentos concursais ou não, com operadores públicos ou privados, a legislação europeia estipula que a eventual atribuição de exclusividade não será absoluta, ou seja, não impede, por definição a entrada de um novo operador.
A entrada de novos operadores pode induzir efeitos positivos para a economia (nacional e regional) e para população, com oferta de novos serviços onde eles não existam ou de cariz complementar a existentes e pode também ter efeitos positivos em todo o sistema e em outros operadores, designadamente pela potenciação da procura, distribuindo-se por toda a rede.
Terá sempre de se analisar o caso concreto e aferir dos impactos (positivos ou negativos) da entrada de um novo operador (acesso livre ou concessão) em linhas onde já opere um ou vários prestadores de serviços ferroviários.
A AMT tem defendido, no que que se refere à contratualização de serviços públicos, que as opções quanto a modelos contratuais e de exploração em concreto, devem ponderadas e fundamentadas do ponto de vista jurídico, económico e financeiro, prosseguindo análises custo benefício e comparador público, mas também do ponto de vista da sustentabilidade social, territorial e ambiental, pelo que, conforme os circunstancialismos concretos, qualquer das opções permitidas por lei poderá ser a melhor.
No que se refere a contratos de concessão ou prestação de serviço público, com operadores públicos ou privados, de acordo com o enquadramento legal e jurisprudencial europeu e nacional, o recebimento de compensações depende da existência de contratos com objetivos/obrigações claras, objetivas e mensuráveis, com critérios transparentes de cálculo de compensações, tendo em conta gastos e rendimentos associados ao serviço público e as incidências positivas e negativas associadas à imposição de obrigações de serviço público, que um operador não faria se considerasse apenas ao seu interesse comercial.
Se um contrato de contrato de serviço público não obedecer a tais requisitos, poderá considerar-se que se está a fechar artificialmente o mercado a outros operadores e a enquadrar o pagamento infundado de compensações, violando os ditames legais e jurisprudenciais, nacionais e europeus.
Seja como for, seja no acesso livre ao mercado seja na contratualização de serviços públicos de transportes, a AMT terá oportunidade de intervir e aferir da compliance legal dos modelos de exploração, através da realização do teste económico já referido ou da emissão de parecer prévio vinculativo sobre peças procedimentais ou contratuais, sem prejuízo do exercício, a todo o tempo, dos poderes de supervisão, fiscalização e auditoria ao funcionamento do mercado.
A AMT tem por objetivo promover e proteger o interesse público da Mobilidade Inclusiva, Eficiente e Sustentável, aplicar um exercício de compliance nas vertentes determinantes da função competitividade para este Ecossistema, suprir falhas de mercado sem gerar falhas de Estado e promover o equilibro de vários interesses como sejam os investidores, os profissionais/utilizadores/consumidores e/ou Cidadãos, os contribuintes.
Por outro lado, a AMT tem também por objetivo enfrentar os desafios do Ecossistema da Mobilidade e dos Transportes, em todos os modos, como sejam (i) garantir a adequada abertura dos mercados; (ii) promover a recuperação de atrasos e desequilíbrios do Ecossistema, designadamente quanto a investimento no hardware (infraestruturas) e uniformização e harmonização dos vários setores quanto ao seu software (serviços, enquadramento legal, desenvolvimentos tecnológicos) etc.); (iii) antecipar os movimentos da imparável digitalização da Economia e da inovação; (iv) promover a sustentabilidade ambiental e cumprir os objetivos de descarbonização da economia; (v) assumir uma defesa intransigente dos direitos e interesses dos consumidores.
E esses princípios/desafios são alcançados pela AMT por intervenção direta quando as circunstâncias se justifiquem ou de acordo com a lei, designadamente através de ações de supervisão, auditoria e fiscalização, emissão de pareceres e instauração de competentes procedimentos sancionatórios, mas também:
- Dispor de um conhecimento compreensivo do Ecossistema, com base em informação rigorosa e atualizada, para informar e orientar os agentes económicos, de forma preventiva e pedagógica. Quanto a este aspeto, de recordar os diagnósticos inovadores sobre o Ecossistema Ferroviário e seus utilizadores1 que se encontram disponível no sítio da internet da AMT;
- A análise periódica de indicadores operacionais, aferindo da sua eficiência, mas também do cumprimento de obrigações legais, regulamentares e contratuais, de forma a antecipar e mitigar impactos sociais, económicos e tecnológicos neste Ecossistema e seus reflexos na economia nacional;
O que os novos players (e os que já operam) do transporte ferroviário de passageiros devem esperar é que o gestor da infraestrutura analise e disponibilize o acesso a todos em igualdade de circunstâncias e que a AMT decida a forma de entrada na rede ferroviária e supervisione o funcionamento do mercado segundo critérios objetivos e imparciais e no estrito cumprimento da legislação e jurisprudência, nacional e europeia.
Outubro 2019
João Carvalho
- Presidente do Conselho de Administração da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes
- Presidente do IRG-Rail 2 “Independent Regulators’ Group – Rail” (Grupo de Reguladores Independentes para a Ferrovia)
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1 Consulta aos Utilizadores de Serviços Ferroviários e Relatórios sobre o Ecossistema Ferroviário Português, disponíveis em: https://www.amt-autoridade.pt/gestão-do-conhecimento/modo-ferroviário-e-outros-sistemas-guiados/
2 Reúne 31 Entidades Reguladoras da Áustria, Bélgica, Bulgária, Croácia, República Checa, Dinamarca, estónia, Finlândia, França, Macedónia do Norte, Alemanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Kosovo, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Polónia, Portugal, Roménia, Sérvia, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido e Kosovo.