O Setor dos Transportes na Descarbonização da Economia de Portugal

As alterações climáticas antropogénicas, ou seja, com origem nas emissões atmosféricas de gases com efeito de estufa (GEE) provenientes de algumas atividades humanas, constituem um dos maiores desafios ambientais do século XXI e seguintes. Como sabemos, o ar é formado essencialmente por oxigénio (20,9%) e azoto (78,1%), mas tem também componentes minoritários tais como o árgon (Ar), o vapor de água (H2O), o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4), o óxido nitroso (N2O) e o ozono (O3) troposférico, entre outros. Os últimos cinco são gases com efeito de estufa (GEE), ou seja, gases que absorvem a radiação infravermelha emitida principalmente pela superfície terrestre. Se não houvesse GEE na atmosfera terrestre a temperatura média global à superfície seria -18º C em lugar do valor atual de 15º C.
Porém, se aumentarmos a concentração atmosférica de GEE a temperatura média global tende a aumentar. É isso precisamente o que está a acontecer. As concentrações atmosféricas dos três principais GEE, com emissões antropogénicas, CO2, CH4 e N2O, aumentaram de 46%, 254% e 21%, respetivamente, em relação aos valores pré-industriais, ou seja anteriores à Revolução Industrial do século XVIII.
As emissões de GEE de um determinado país têm origem em vários setores da atividade humana, principalmente a energia, transportes, indústria, agricultura e resíduos, mas as percentagens das contribuições setoriais variam conforme o país. No caso de Portugal no ano de 2017, aqueles setores corresponderam a 37,5%, 24,2%, 21,7%, 9,8% e 6,6% do total das emissões, respetivamente, e totalizaram 78 milhões de toneladas de CO2 equivalente (MtCO2e). A unidade CO2e resulta de se exprimir o forçamento radiativo de uma mistura de GEE em termos da quantidade de CO2 que produziria um forçamento equivalente. Conclui-se que os transportes constituem um dos setores que mais GEE emitem para a atmosfera em Portugal. No conjunto dos 28 países da UE o setor dos transportes contribuiu com 25% das emissões de GEE, valor apenas ligeiramente superior ao de Portugal. A nível mundial o setor dos transportes contribui com 23%.
As emissões de GEE provenientes dos transportes têm aumentado globalmente e na UE devido ao aumento do tráfego rodoviário, especialmente o particular, baseado em motores de combustão interna a gasolina e gasóleo. Enquanto as emissões totais de GEE da UE decresceram de 22% de 1990 a 2017, as emissões do setor dos transportes aumentaram 15% no mesmo período. Em Portugal, durante o mesmo intervalo de tempo, as emissões totais de GEE aumentaram 29,2%, enquanto as emissões do setor dos transportes aumentaram 68%. Importa porém, analisar mais em detalhe a evolução durante esses 27 anos. As emissões totais de Portugal aumentaram fortemente desde 1990 até atingirem um máximo em 2005 devido ao crescimento da economia e da mobilidade rodoviária nesse período. Depois, as emissões totais decresceram devido a medidas de mitigação (redução das emissões de GEE) e à recessão económica, especialmente no período de 2009-2013. A partir de 2015 as emissões totais voltam a aumentar devido principalmente ao maior recurso aos combustíveis fósseis - carvão, fuelóleo e gás natural - na geração de energia elétrica que se tornou necessário para compensar a redução da geração de hidroeletricidade. Esta redução resulta das secas mais frequentes e intensas, o que constitui uma consequência das alterações climáticas antropogénicas em Portugal, Espanha e de um modo geral no sul da Europa e região do Mediterrâneo, que tende a agravar-se.
No setor dos transportes a evolução teve algumas semelhanças dado que as emissões aumentaram até ao início dos anos de 2000, depois estabilizaram e a partir de 2005 começaram a decrescer. Contudo, mais recentemente, as emissões dos transportes aumentaram de 8,4% no período de 2013-2017, devido ao aumento anual sustentado do PIB. Esta correlação entre as emissões de GEE nos transportes e o PIB mostra a grande dependência que o país tem no transporte rodoviário com gasolina e gasóleo.
Portugal tem tido um desempenho muito bom na geração de eletricidade a partir de fontes renováveis devido principalmente a um grande investimento nos parques eólicos. No ano de 2016, a percentagem de eletricidade proveniente de fontes renováveis foi de 54,1%, o terceiro valor mais elevado na EU a seguir à Áustria e à Suécia. Em 2017, 28,1% da energia final consumida no país tinha origem em fontes renováveis sendo este o 7º valor mais elevado no conjunto dos 28 países da UE. Contudo este valor é bastante variável devido à diminuição da geração de hidroeletricidade causada pela tendência de redução da precipitação média anual na Península Ibérica.
No que respeita ao futuro, Portugal tem um roteiro para atingir a neutralidade carbónica em 2050 (RNC2050), que foi aprovado pelo governo através da RCM nº107/2019, publicada em 1 de julho. Neutralidade carbónica significa que as emissões de GEE provenientes de atividades humanas são compensadas pelo sequestro biológico do CO2 feito pelas plantas e florestas. Para conseguir este objetivo é necessário: 1) proceder a uma transição energética na qual se substitui a maior parte do uso dos combustíveis fósseis pelas energias renováveis - eólica, solar térmica e fotovoltaica, geotérmica e oceânicas – e 2) aumentar significativamente a eficiência no uso de energia.
O setor dos transportes desempenha um papel central na descarbonização da economia. O RNC2050 prevê que seja possível ter em 2050 uma redução das emissões de GEE no setor dos transportes de 98% relativamente ao ano de 2005. O cumprimento deste objetivo ambicioso e difícil de atingir, baseia-se no reforço do uso dos transportes públicos para substituir o uso dos privados e na substituição dos atuais veículos privados e públicos com motores de combustão interna, por veículos elétricos. Também se prevê o uso de veículos movidos a hidrogénio e a biocombustíveis avançados. A descarbonização dos transportes por via dos veículos elétricos depende de utilizar muito mais as energias renováveis na geração de eletricidade. Depende ainda da eletrificação da ferrovia e do seu maior uso para o transporte de passageiros e mercadorias. Tanto a percentagem de passageiros como de mercadorias transportadas por via ferroviária em Portugal estão abaixo da média da EU.
Portugal tem dado pouca importância à construção da vertente ferroviária das redes transeuropeias de transportes (RTE-T). Espanha, ao contrário de Portugal, tem-se empenhado em renovar a sua frota e rede ferroviária e adotou os critérios europeus de interoperabilidade. Se Portugal não adotar os mesmos critérios, os passageiros e as mercadorias em trânsito para fora do país ficarão obrigados aos custos e tempos de transbordo nas plataformas ferroviárias de Badajoz, Salamanca e Vigo.
Portugal tem uma intensidade de utilização do sistema ferroviário muito baixa, bem como um fraco desempenho na segurança desse sistema. Estas características foram responsáveis por colocar Portugal em antepenúltimo lugar, seguido da Bulgária e da Roménia, numa avaliação do Railway Performance Index na UE feita pela consultora Boston Consulting em 2018. A melhoria do sistema ferroviário nacional e a sua maior utilização nos próximos anos é um objetivo imprescindível para se conseguir atingir a neutralidade carbónica em 2050. Será necessária uma grande persistência para abandonar a cultura dominante do uso do veículo automóvel particular, em parte tornando o transporte ferroviário mais atrativo para os utentes.
Lisboa, 10 de novembro de 2019
Filipe Duarte Santos
Professor Catedrático da Faculdade de Ciências de Lisboa
Presidente do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável