QUE SE PASSA COM OS CONCURSOS NA FERROVIA?

QUE SE PASSA COM OS CONCURSOS NA FERROVIA?

O Governo tem vindo a afirmar como aposta para o atual mandato um incremento de investimento na ferrovia e no transporte publico, que sempre foram os parentes pobres, no passado, do investimento público. O reforço da capacidade da CP, agora integrada de novo com a EMEF, e dos Metros de Lisboa e do Porto, estão presentes em todos os discursos do Primeiro Ministro, do Ministro das Infraestruturas e do Ministro do Ambiente. O previsto PNI 2030 passa das palavras aos atos, com um reforço nunca visto de mais de 4 mil milhões de euros para a ferrovia e mais de mil milhões para os dois Metros principais. E sucedem-se já concursos para aquisição de novo material circulante para a CP e para os Metros, a par de outros para melhoria da sinalização e reforço e modernização das linhas existentes e de novas linhas.

Acontece, porém, que as notícias vindas a público anunciam problemas sucessivos nos principais concursos para fornecimento de material circulante, quer na CP, quer no Metro de Lisboa, que irão atrasar de sobremaneira os projetos previstos.

Na CP, num concurso para fornecimento de 22 novos comboios regionais, no valor superior a 160 milhões de euros, tudo esta parado: a seguir à adjudicação aos Suíços da Stadler, os Espanhóis da CAF impugnaram e pararam o procedimento.

No Metro de Lisboa, num concurso para fornecimento de 14 novos comboios e sinalização para os novos e os existentes, no valor superior a 130 milhões de euros, tudo está igualmente parado: a seguir à adjudicação ao Agrupamento Siemens/Stadler, o Agrupamento Thales/CRRC impugnou e parou o procedimento.

O que se passa nestes procedimentos para tudo estar parado?

Será apenas fruto da normal litigância em concursos públicos? Ou haverá outras razões para tanto problema?

Tendo em conta o valor, estamos face a concursos públicos ou limitados com prévia qualificação de natureza internacional. Estes concursos atraíram os principais construtores e fornecedores mundiais, como a Stadler, a Siemens, a Thales, a Bombardier, a Alstom, vários espanhóis, como a CAF e a Talgo e até fabricantes chineses. São, por isso, concursos juridicamente complexos, com especificações técnicas particulares e exigências apertadas. O da CP foi lançado no inicio de 2019 e só foi adjudicado no final do mesmo ano. O do Metro de Lisboa, foi lançado a meio do ano de 2019 e adjudicado no seu fim, também.

Pensamos que várias causas poderão estar na origem dos problemas verificados e que importa analisar e corrigir rapidamente, senão nunca mais se verificará a melhoria da ferrovia em Portugal.

Tenha-se em conta que os dois concursos referidos foram lançados no último ano da anterior legislatura, já quase em campanha eleitoral, após a remodelação ministerial que trouxe um novo Ministro para a tutela da CP e um novo Presidente da empresa, após grande pressão pública pelos sucessivos cancelamentos de comboios e supressão de horários, por falta de material circulante e problemas graves de manutenção.

Face a esta pressão e urgência na resolução dos problemas, atrevemo-nos a dizer que, eventualmente, os documentos dos concursos talvez tenham sido preparados com alguma precipitação, nunca boa conselheira. Era necessário abrir rapidamente os concursos, face à pressão existente.

Um bom indício de problemas com os documentos dos concursos pode ser o facto de vários grandes construtores se terem abstido de concorrer, apesar de terem sinalizado um interesse inicial. Veja-se o caso da Bombardier e da Alstom, no Metro de Lisboa, ou da Siemens e da Alstom na CP. Igualmente será um indício a ter em conta a ausência de outros grandes construtores mundiais, que nem se deram ao trabalho de vir analisar os concursos.

A pressa é algo que deve ser evitado de forma a poder construir-se um procedimento seguro e confiável, jurídica e tecnicamente, que atraia os melhores e potencie a concorrência. Ganha o Estado com melhores propostas e melhor serviço.

Além de que problemas surgidos com concursos tendem a afastar no futuro potenciais concorrentes, que preferem ir a outros países oferecer os seus bens e serviços, onde os procedimentos sejam mais confiáveis, sem terem de despender dinheiro na preparação de propostas que não levam a nada, devido muitas vezes a especificações erradas e exigências despropositadas e desproporcionadas.

Devemos ainda ter em conta, como eventual justificação para tanta conflitualidade, o facto de haver ainda muitos poucos concursos do género em Portugal. Existe ainda um fluxo reduzido de contratação, pelo que os concorrentes potenciais ficam com a noção que têm de ganhar os poucos concursos que são abertos, pois não há mais nenhum a que possam optar em Portugal. A existência de um programa compras planeado com tempo e publicitado com regularidade e volume atrai os investidores e baixa a litigância.

Finalmente, pensamos ainda que a natureza muito fechada do mercado em Portugal também não auxilia uma fluidez normal dos concursos. Face à ausência de grandes concursos em Portugal nos últimos anos, na ferrovia mesmo nas últimas décadas, as empresas compradoras foram sendo capturadas por uns poucos fornecedores incumbentes, ficando reféns dos mesmos e dos seus produtos, vendo muito difícil a aquisição de produtos concorrentes. O receio de problemas nas interligações entre produtos concorrentes leva, mesmo inconscientemente, à preparação de especificações técnicas visando produtos concretos que, afinal, são aqueles que são melhor conhecidos pela empresa adquirente.

Este é um problema grande a evitar!

O nosso Código dos Contratos Públicos (CCP), no seguimento das Diretivas Europeias de contratação pública e inúmera jurisprudência europeia e nacional, tem soluções que podem e devem ser usados. Desde logo as compras por lotes. Mas, sobretudo, impõe que não se peçam produtos concretos identificáveis de um fornecedor, pois dessa forma violam-se os princípios fundamentais da contratação pública, da concorrência, da igualdade e da imparcialidade e perde o Estado, ao ver afastados concorrentes, que também poderiam fornecer idênticos produtos, eventualmente melhores.

Como refere o n.º 4 do artigo 49.º do CCP: “As especificações técnicas devem permitir a igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação e não devem criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência”. E no n.º 8 do mesmo artigo: “(...) as especificações técnicas não podem fazer referência a determinado fabrico ou proveniência, a um procedimento específico que caracterize os produtos ou serviços prestados por determinado fornecedor, ou a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados que tenham por efeito favorecer ou eliminar determinadas empresas ou produtos”.

Não ter em conta o referido pode significar uma barreira intransponível à concorrência, por tornar impossível uma proposta alternativa ao incumbente ou a tornar demasiado onerosa para poder aspirar a vencer.

Isso não é o pretendido num mercado público, em que a igualdade de acesso, em idênticas condições, deve ser permitida a todos. Só assim o Estado pode garantir que recebe a proposta economicamente mais vantajosa.

Em suma, várias podem ser as causas dos problemas que os recentes concursos na ferrovia têm tido e alguns são evitáveis e devem sê-lo, com uma ponderação maior na preparação dos documentos dos concursos, com um apoio maior de consultores especializados e experientes, expurgando os documentos de exigências desproporcionadas e, especialmente, tendo a cautela de não pôr um rosto no concurso que evite a sã concorrência, que se pretende. O CCP tem soluções que permitem uma agilidade dos concursos, importando saber baixar a litigância para melhores resultados.

Iniciou-se agora uma nova fase na ferrovia que se quer frutuosa e acompanha-se o Governo neste objetivo, mas tem de se pedir uma maior calma e ponderação na forma como se executa este desiderato, para que os passos dados sejam seguros e não se tenha de voltar para trás ou adiar os investimentos, perdendo fundos europeus disponíveis, apenas devido a erros evitáveis.

12 de Fevereiro de 2020

José Luís Moreira da Silva
Advogado - especialista em Direito Administrativo
Responsável pelos Departamentos de Direito Público e Direito Ambiental da SRS Advogados



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