A MOBILIDADE URBANA NO DIA DEPOIS

A MOBILIDADE URBANA NO DIA DEPOIS

A pandemia que agora assola o mundo tem originado um sem número de reflexões sobre como será o dia depois. Desde propostas que pugnam por alterações drásticas nos modos de vida (ainda impensáveis há apenas escassos meses), até elucubrações fantasiosas sobre um novo mundo, em que os contactos pessoais seriam limitados, com restrições que só têm paralelo com o que vivemos em período de confinação. Sendo interessante analisar essas reflexões numa óptica de exercício intelectual, não são elas que interessa abordar neste curto texto. Não que se lhes negue interesse analítico, mas porque é mais prudente ser-se céptico em relação a rupturas e disrupções que não têm por base alterações na superestrutura que deriva dos modos de produção existentes e dos mecanismos sociais e culturais que permitem o seu desenvolvimento. Por isso, sem pôr de parte algumas alterações que o momento histórico que vivemos poderiam justificar, é mais útil centrar a análise nos fenómenos e mudanças que o modo como estamos a enfrentar esta pandemia estão a potenciar ou a consolidar. No que à mobilidade urbana se refere, parece ser esta uma abordagem mais eficaz.

Ao contrário dos que exultam com a diminuição do tráfego rodoviário (nomeadamente em veículo próprio) e a consequente diminuição do ruído urbano e das emissões poluentes (que as medições e as imagens de satélite atestam de forma impressionante), parece oportuno recordar que tais “sucessos” se devem a uma quase paragem da economia e da vida urbana. Previsões de decréscimos do PIB na ordem dos 20% no primeiro trimestre deste ano, do desemprego a aumentar para uns 14%, com as companhias aéreas em paragem forçada (com o consequente impacte no turismo) e o confinamento de milhões de pessoas, aí estão para o demonstrar. Se a “solução” para os problemas da mobilidade urbana (já que mais de 1/3 das emissões de gases com efeito de estufa são atribuíveis ao sector dos transportes, e maioritariamente ao rodoviário) for esta, então teremos de concluir que não somos capazes de conciliar desenvolvimento (nas suas dimensões económica e social) com mobilidade e um modo de vida urbano. Quando mais de 70% da população dos países desenvolvidos é hoje urbana, parece-me ser uma “solução” irrealista e propiciadora de uma revolta social contra os poderes públicos instituídos, que só beneficiará o nacional- populismo, que tem vindo a ganhar força social e politica nas últimas décadas.

Todavia, no que à mobilidade urbana diz respeito, o que estamos hoje a experienciar põe em evidência algumas hipóteses de mudança que importa explorar. Comecemos pelo urbanismo, já que as necessidades de deslocação de pessoas e bens tem sobretudo a ver com a sua distribuição no espaço. Se há alguma coisa indiscutível nestes meses é o aumento da utilização do comércio de proximidade, não só pelas interdições de movimentação impostas e pelo encerramento das grandes superfícies comerciais, mas também porque é nesse comércio de bairro (nomeadamente mercearias, minimercados, talhos, padarias e farmácias – os que têm autorização para estarem abertos) que as medidas profiláticas de distanciamento social e de protecção individual têm sido aplicadas com maior adesão e eficácia. É uma redescoberta que virá para ficar, pelo menos até que a memória destes dias se mantenha.

Outra mudança, que tem muita probabilidade de se consolidar e desenvolver, tem a ver com as compras online e o teletrabalho. Era algo que já se praticava, mas com uma dimensão e uma generalização imensamente inferiores à actual. Ao nível de alguns serviços e níveis de ensino, o futuro pode passar por uma melhor articulação e utilização destas possibilidades com as suas congéneres presenciais. Isto não só permitirá uma melhor gestão dos tempos familiares e do achatamento das horas de pico de tráfego, como uma reorganização do próprio funcionamento das empresas e dos serviços públicos, assim como uma racionalização da logística urbana muito para além do que se tem conseguido nas grandes superfícies e redes de distribuição.

Mas, em contrapartida, há outros sinais e percepções que apontam para um funcionamento em sentido contrário, isto é, em vez de contribuírem para a redução do número de deslocações motorizadas e da utilização do transporte individual, vão intensificar o seu uso. Desde logo o temor de partilhar veículos, base dos sistemas de ”car” ou “byke sharing” (onde se depositava tanta esperança) levará não só a uma menor adesão a este tipo de alternativas de mobilidade, como, por outro lado, é provável que se venha a exigir um maior espaçamento entre os utilizadores dos transportes colectivos, isto numa altura em que, para fazer face ao aumento da procura registada após a introdução dos novos passes, se começou aí a eliminar lugares sentados para aumentar a capacidade dos veículos. Serão dois aspectos que irão por certo conduzir a um acréscimo do uso do transporte individual, até porque a significativa redução do preço dos combustíveis (apesar da sua carga fiscal ser próxima dos 70%) irá torná-lo ainda mais atractivo.

Em síntese. Se é possível antecipar a consolidação de algumas mudanças que irão no sentido da redução da necessidade de deslocações motorizadas, haverá outras, associadas quer à percepção do perigo de contágio (com o qual teremos de viver mais tempo do que se esperava no início da pandemia, para além da interiorização de que, afinal, não estávamos, enquanto população do Primeiro Mundo, tão imunes a este tipo de ocorrências quanto pensávamos), quer a uma organização da vida quotidiana mais flexível, que potenciarão uma maior utilização do transporte individual.

No entanto, não poderemos daqui concluir que a luta por uma repartição modal mais amiga do ambiente esteja comprometida. Os impactes ambientais dos transportes e os seus efeitos ao nível das alterações climáticas, não permitem que se descure esse objectivo ou se aceite um retrocesso neste domínio. A questão é que, aqui e agora, é mais necessário que nunca articular as políticas urbanas de urbanismo, habitação e transportes (favorecendo cada vez mais um “urbanismo de proximidade”) e tornar os transportes colectivos mais competitivos em relação ao automóvel particular, não só em termos de custo de utilização, mas também ao nível do conforto e da sua adaptação a novos modos de vida, mais flexíveis e por isso mais exigentes em termos de oferta.

Lisboa, 20 de abril de 2020.

Fernando Nunes da Silva
Professor Catedrático de Urbanismo e Transportes - IST


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