Aeroporto de Lisboa. Pessoas de bem, perguntas de mal.
É extraordinário como a discussão sobre o aeroporto de Lisboa consegue ser sistematicamente retomada, quase sempre pelos mesmos protagonistas, sem que se chegue a alguma conclusão e, pior ainda, enviesando sempre o que deveria ser a correta perceção do problema. Será que é isso mesmo que se pretende, agitar apenas para criar entropia, distrair de outros assuntos mais graves ou criar impactes que nada têm a ver com o transporte aéreo?
Há 50 anos que se discute este assunto. Em 2020 o governo tomou uma decisão, a primeira em 50 anos, e de novo se permite que essa decisão não tenha qualquer valor. Parece desde logo insólito, aos olhos de qualquer observador independente, que as decisões de um governo sejam desfeitas com esta facilidade, mesmo que exista uma legislação a dar cobertura, por absurdo, a que uma decisão nacional possa ser anulada por um município.
Mas este incidente, com a recusa de aprovação do projeto do Montijo, deu apenas o pretexto para voltar a colocar em agenda política a questão do aeroporto de Lisboa, com discussões que divergem de forma espantosa, por exemplo custos de obras que divergem em milhões de euros ou tempos de execução que divergem em anos, etc. A única convergência que se identifica é que todos se referem a imensos estudos, cujo valor acrescentado sobre os estudos realizados há 50 anos é apenas marginal. Mesmo que nenhuma outra questão emergisse, as utilizações desses poucos ou muitos milhões de euros representam um custo de oportunidade muito elevado para a nossa sociedade, tão carenciada de muitas outras coisas. Em momentos como estes seria sempre melhor disponibilizar todos os estudos num site da internet, para que, com toda a transparência qualquer cidadão possa verificar o que dizem os estudos. Isto seria transparência, um atributo deveras apreciado em contexto de decisão pública.
O que deixa o cidadão perplexo é o facto dos protagonistas das várias discussões serem supostamente pessoas de bem, informadas, intelectualmente preparadas e algumas até se afirmam como especialistas do sector. Se assim é, o que os faz alimentar tamanho contrassenso, de forma cega, ignorando o rigor da técnica e mesmo o interesse público e sem nunca porem em causa o próprio processo de decisão?
Sou portuguesa, professora e investigadora em sistemas de transportes, estudo há já largos anos processos de decisão, regulamentação e políticas públicas, e por isso tenho uma ambição muito especifica: que no meu país as decisões se tomem com rigor técnico baseado no melhor nível de conhecimento possível, em processos que pugnem por honestidade intelectual e transparência política. Não me parece ser pedir demais, muito pelo contrário.
Por observação de inúmeros casos em vários países, de diferentes níveis de desenvolvimento e culturas, sabemos que a melhor forma de afastar um processo de decisão do seu objetivo é, desde logo, começar por enviesar as perguntas que formatam o problema. É exatamente isso que tem acontecido há anos em Portugal com o caso do aeroporto de Lisboa e continua a acontecer.
A pergunta que tem sido a génese de toda a discussão é onde vai ser a localização do aeroporto, quando esta pergunta só produz um único efeito, a variação artificial da valorização dos terrenos próximos de onde se diz (e desdiz) que o aeroporto se irá localizar nos próximos 50 anos. Como é óbvio, esta não é a formulação correta do problema.
Noutras intervenções, tive já oportunidade de demonstrar e explicar que a recuperação do transporte aéreo, está associado à recuperação dos sectores de turismo e negócios e levará cerca de 5 anos no cenário mais otimista. Esta previsão tem vindo a ser corroborada por diversas outras entidades nacionais e internacionais. Apresento de seguida, na sequência adequada, as perguntas macro que devem liderar o processo de decisão e o que devemos fazer para lhes responder:
- - Qual o futuro do desenvolvimento dos sectores de turismo e negócios em Portugal?
Necessitamos de um plano estratégico de desenvolvimento destes sectores. A existência de um aeroporto não produz o milagre da procura. A procura de um aeroporto é a procura pelo(s) destino(s) que estão no seu espaço de influência (hinterland).
Que qualidade de turismo queremos? Que infraestruturas são necessárias para além do aeroporto? Que atrações de destino conseguiremos oferecer? Como induziremos o desenvolvimento do território para assegurar sustentabilidade ambiental e sucesso económico no cumprimento desses objetivos?
Sem resposta a estas e outras perguntas neste contexto, iremos projetar uma solução, sem sabermos para quê e comprometendo recursos que têm um enorme custo de oportunidade para o presente e também para as gerações futuras.
Quando se projeta um aeroporto o objetivo não é erguer uma infraestrutura, ao invés a infraestrutura é um dos instrumentos que viabiliza atingir os resultados e os impactes desejados. - - Qual a expectativa de procura de transporte aéreo que podemos ter num horizonte de 30-50 anos?
Muito se poderia dizer sobre a procura de transporte aéreo nesse horizonte temporal, mas não é aqui o local nem o momento adequado. O que importa é deixar claro que esta resposta depende inteiramente do desenvolvimento projetado na pergunta anterior e vai condicionar o tipo de aeroporto que precisamos.
Não faz por isso qualquer sentido discutir a localização de um novo aeroporto sem sabermos primeiro para que o queremos. - - Que tipo de aeroporto necessitamos para fazer face a esses objetivos (1ª pergunta) e a essa expectativa de procura (2ª pergunta)?
Aqui necessitamos definir a escala do futuro aeroporto, traços gerais da sua caracterização e do faseamento do seu desenvolvimento, desejavelmente flexível, se concluirmos que de facto é necessário um novo aeroporto, e só com esta terceira pergunta poderemos chegar ou não a essa conclusão. - - Quais os locais possíveis (incluindo os atuais)?
Elencar as escolhas possíveis e as vantagens e inconvenientes de cada uma delas, como foi feito há 50 anos, é indispensável e recomendável que não se caia em favoritismos primários e apriorísticos por um ou por outro. - - Quais os resultados de uma análise comparativa das várias opções.
A avaliação ambiental estratégica (AAE) é um instrumento de natureza estratégica, que integra várias dimensões, nomeadamente: biofísica, social, institucionais e económicas relevantes, e que avalia as oportunidades e os riscos ambientais de todas as alternativas, permitindo a sua comparação. - - Qual a escolha final
Finalmente, chegamos então ao momento de decisão final, suportado pelos elementos que dão resposta às perguntas anteriores.
Como facilmente se percebe a atual discussão começa com a 6ª pergunta, ignorando as 5 primeiras, para as quais não são conhecidos quaisquer estudos. Portanto, o enviesamento que estamos a fazer conduz a uma decisão não suportada. Mais aberrante ainda, após tomar uma decisão de curto-prazo, pretende-se agora preparar uma avaliação ambiental estratégica, cuja natureza é de longo prazo.
Mas o absurdo não termina aqui. A opção Portela + Montijo é, como já tive oportunidade de referir várias vezes, uma solução de curto prazo para fazer face ao crescimento do tráfego do aeroporto Humberto Delgado, não é por isso comparável à alternativa de Alcochete ou qualquer outra que pretenda deslocar o aeroporto principal da Portela de Sacavém. Montijo levará cerca de 3 anos a estar pronto, bem a tempo da expectável retoma do mercado. Se por hipótese teórica tomássemos hoje a decisão de ir para Alcochete, esse aeroporto estaria pronto daqui a 12-15 anos. Sim, é necessário entrar em negociação de expropriação de terrenos e ainda encontrar solução aceitável para o campo de tiro de Alcochete, do qual pouco se fala, mas cujo potencial de geração de receita é enorme, pois é um campo de tiro que permite, pela proximidade do mar, exercícios mar e terra, caso invulgar na Europa e de grande valia no âmbito militar, e que obviamente terá de ser objeto de indemnização, se for possível encontrar alternativa de idêntica valia no território nacional.
Mas a questão não é Alcochete ou Montijo. A questão de fundo é se, de facto, precisamos de um mega-aeroporto e para quê, e se o tivermos como vamos assegurar que teremos a procura suficiente para sustentar esse investimento. Deixemos por isso a solução Portela mais Montijo seguir o seu curso como solução de contingência e apenas devido à ausência de decisão dos últimos 50 anos.
Paremos de uma vez por todas de enviesar o problema e as questões de partida, fingindo que estamos a resolver uma questão de longo prazo, quando na verdade só estamos a dar voz aos interesses de curto prazo e que de aeronáuticos nada têm.
Agora sim, é o momento de com rigor e honestidade intelectual dar início a um processo de decisão, respondendo às 5 perguntas referidas acima, para o que queremos ter e ser no mapa mundial do turismo de lazer e negócio daqui a 20 anos e o que vamos fazer para lá chegar. Então e só então, poderemos perceber qual o papel do aeroporto nesse contexto e que tipo de aeroporto para daqui a 20 anos.
Acalmem-se por isso os interesses que beneficiam do enviesamento da discussão, e acordem as entidades e protagonistas sérios e competentes que podem efetivamente contribuir para uma decisão de elevada qualidade neste país.
Lisboa, 14 de Março de 2021
Rosário Macário
Professora e Investigadora
Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa