intervenção escrita do Dr. Manuel Moura

Nota da Comissão Organizadora

Por motivos imprevistos de última hora não foi possível contar com a presença do Dr. Manuel Cidade Moura como Orador na 5ª Sessão do XV Congresso Nacional da ADFERSIT, tendo, posteriormente, enviado à Comissão Organizadora a sua prevista intervenção.

A retrospetiva que é feita à “vida da RAVE” e a detalhada reflexão sobre o inconstante percurso da Alta Velocidade em Portugal, em particular no que diz respeito à Interoperabilidade, justificam, como forma de a tornar pública, a respetiva publicação associada ao Congresso.


Minhas Senhoras
Meus Senhores,

Cumprimento todos os presentes, nas suas diferentes qualidades e nas pessoas do Dr. Pedro Siza Vieira, Presidente deste Congresso e Eng.º Tomás Leiria Pinto, Presidente da ADFERSIT, quero agradecer a organização de mais este Congresso, prova da vitalidade e da capacidade de intervenção da nossa Associação.

Estando presente, neste painel, na qualidade, com os inerentes defeitos, de ter sido o 1º Presidente da RAVE, empresa cujo objeto era o de dar corpo ao Projeto da Alta Velocidade em Portugal e nada tendo sido realizado até ao dia de hoje, sempre ficará, para mim, a dúvida da razão do convite, que aceitei com o maior gosto.

A RAVE foi criada em 19 de dezembro de 2000, pelo Decreto-lei nº 323-H, para desenvolver o Projeto da Alta Velocidade em Portugal, tendo por objeto estatutário o desenvolvimento e coordenação dos trabalhos e estudos necessários para a formação das decisões de planeamento e construção, financiamento, fornecimento e exploração de uma rede ferroviária de alta velocidade a instalar em Portugal continental e da sua ligação com a rede espanhola de igual natureza.

A RAVE vem a ser extinta aquando da entrada em vigor do Orçamento de Estado para 2011, tendo sido integrada na REFER, com todo o seu património de 120 M € em Estudos e Projetos e 30 M €, em Custos de Estrutura, conforme relatório do Tribunal de Contas de 2015. Por sua vez, neste ano de 2015 a REFER é fundida com a Estradas de Portugal, dando origem à atual Infraestruturas de Portugal.

Este foi o caminho atribulado do Projeto, denominado de Alta Velocidade em Portugal, que nos conduz ao tema hoje proposto neste Painel, centrado no elemento Velocidade, traduzindo aquele que foi, desde sempre e até hoje, o maior equívoco da comunicação, em Portugal, do Projeto da Alta Velocidade. Este, antes de tudo, terá que ser um projeto de Interoperabilidade com a rede europeia.

É verdade que a velocidade foi elemento de grande relevância nos países que desenvolveram o Projeto da Alta Velocidade, nomeadamente em França e Japão, entre outros, em que, a par da qualidade do transporte oferecido, se disputam de forma empenhada, os sucessivos recordes de velocidade, testando ao limite a aderência do material circulante ao carril que o suporta e conduz, atingindo já velocidades superiores aos 500 km/h.

Mas é igualmente verdade que a Península Ibérica, não pode ter a velocidade como primeiro objetivo. A velocidade   é um elemento de projeto relevante, mas longe de ser o mais importante.

No caso de Portugal e Espanha o elemento de projeto mais relevante, que determina o futuro do modo ferroviário nestes países, é a interoperabilidade das redes, definida conforme a Diretiva Europeia de 23 de julho de1996, a qual tem como primeiro considerando

 “que, para que os cidadãos da União, os operadores económicos e as coletividades regionais e locais beneficiem plenamente das vantagens decorrentes da criação de um espaço sem fronteiras, importa, designadamente, incentivar a interconexão e a interoperabilidade das redes nacionais de comboios de alta velocidade, bem como o acesso a essas redes;” constituindo, deste modo, um elemento de coesão e de afirmação do espaço europeu.

Como condição necessária para a interoperabilidade, nos termos desta Diretiva Europeia e no caso concreto de Portugal, haverá que:

  1. Reduzir a distância entre carris, vulgarmente designada por bitola, para estarmos conformes com a bitola europeia, abandonando a atual bitola ibérica, aliás, cada vez mais condenada a ser a bitola lusitana.
  2. Adaptar os gabaris do material circulante e das infraestruturas, ou seja, do contorno exterior do material e carga permitido e da localização dos obstáculos na infraestrutura.
  3. Adaptar os sistemas de sinalização e controle de velocidade.
  4. Adaptar as diferentes regras de exploração e de segurança.

E foi tudo isto que, tendo sido estudado e projetado, nunca passou do papel e que hoje se limita a constituir acervo histórico dos arquivos das Infraestruturas de Portugal.

Já há mais de 30 anos que a Espanha vem construindo novas vias-férreas em bitola europeia, totalmente interoperáveis de acordo com as especificações técnicas europeias, para se ver livre dos problemas da falta de interoperabilidade ferroviária. Nos últimos 30 anos, a Espanha começou a adotar soluções para pôr termo a esse isolamento, soluções essas que resultaram e que estão disponíveis para serem copiadas. Saber copiar é uma virtude e muitas vezes resulta bem.

Nestes mesmos 30 anos, em Portugal, pelo contrário, nenhuma medida foi concretizada no mesmo sentido.

Embora nunca concretizada, é da mais elementar justiça referir a Resolução do Conselho de Ministros n.º 52/88, de 15-12-1988, sendo então Ministro da Pasta, o senhor Eng.º João Maria Oliveira Martins e Primeiro-Ministro o Professor Doutor António Aníbal Cavaco Silva. Nesta resolução, o Governo Português define uma orientação clara e inequívoca relativa aos parâmetros a adotar, com vista a uma nova realidade ferroviária.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 52/88

Considerando que os contactos regularmente estabelecidos entre o Governo Português e o Governo Espanhol têm permitido analisar e coordenar a execução dos grandes eixos internacionais por via terrestre a cargo de cada um dos países;

Considerando que Portugal e a Espanha preveem a construção de novas linhas ferroviárias para alta velocidade, embora com periodificações (agendamentos)próprias;

Considerando que o caminho de ferro, com linhas de alta velocidade, representa uma nova era para o transporte ferroviário e que os avanços significativos desta conceção de transporte são importantes para a construção do mercado interno na Comunidade Europeia;

Considerando que, neste contexto, a Península não deveria ficar à margem, perpetuando uma situação de exceção quanto à bitola ferroviária (1,667 m) decidida pela Espanha na época do arranque do caminho de ferro, quando outros países, incluindo Portugal, haviam optado por uma bitola diferente (1,435 m);

Considerando os resultados das conversações que vêm sendo mantidas entre os Ministros responsáveis pelos transportes em ambos os países, quer no quadro bilateral, quer no âmbito do Conselho da Comunidade Europeia:

Nos termos da alínea g) do artigo 202.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolveu:

  1. As novas linhas ferroviárias que venham a ser construídas em Portugal para transporte de passageiros em alta velocidade – velocidade nominal mínima igual ou superior a 300 km – deverão adotar a bitola europeia (1,435 m).
  2. As condições em que devem ser programadas as ligações entre Portugal e Espanha na rede ferroviária de alta velocidade com a bitola europeia serão examinadas no âmbito da Comissão Técnica Luso-Espanhola para os Grandes Eixos de Transporte Terrestre.
  3. A CP deverá apresentar, no prazo de um ano, um estudo sobre quais as linhas existentes em que, eventualmente, deva ter lugar a mudança da bitola peninsular para a bitola europeia e em que condições, tal mudança deve ser feita.

Presidência do Conselho de Ministros, 15 de dezembro de 1988. – O Primeiro-Ministro, Aníbal António Cavaco Silva.

Contudo, esta Resolução ainda não foi executada, tendo a última década do século XX, sido dedicada, em termos de infraestruturas de transportes, ao desenvolvimento da rodovia, com uma visão esclarecida das soluções a adotar, não hesitando em definir e fazer construir uma rede de autoestradas que, hoje, serve o País em toda a sua plenitude, sendo um elemento importante no crescimento e afirmação da economia, em muitas das suas vertentes.

Como já referido, só no final do ano de 2000 vem a ser criada a RAVE, sob o impulso forte e esclarecido do então Ministro, responsável pelas infraestruturas, Dr. Jorge Coelho, que tinha deste Projeto a visão europeia que, desde sempre esteve na sua origem, repondo o assunto na agenda mediática e estabelecendo as condições necessárias ao cumprimento do objeto social da empresa.

Com a saída de Jorge Coelho, pelas razões de infortúnio, que são conhecidas, o Projeto da ferrovia para o século XXI em Portugal, sofreu um revés profundo. Contudo, sempre se dirá que a semente deixada foi germinando, sendo exemplo disso mesmo a Cimeira Luso-Espanhola, realizada na Figueira da Foz, nos dias 7 e 8 de novembro de 2003.

E houve, nessa Cimeira, compromissos assumidos, que são da maior importância e que se mantêm muito atuais:

  1. Estudo sobre bitola

Foi aprovado o estudo das soluções técnicas para os problemas de bitola na Rede Ferroviária da Península Ibérica. Com base neste estudo, ambas as delegações elaboraram um índice que permitirá o desenvolvimento de um documento mais amplo antes da Próxima Cimeira Luso-Espanhola, pelo que, nesta data, os dois Ministros signatários decidem encarregar uma equipa técnica mista da REFER/RAVE e GIF (a designar por proposta dos Presidentes daquelas entidades) da continuação dos trabalhos.

  • Alta Velocidade
    • Ligações Internacionais (Infraestruturas)

Considerando a excecional importância socioeconómica para os dois Países de uma rede ferroviária de alta velocidade ibérica coerente que, integrada nas Redes Transeuropeias, permita o máximo desenvolvimento das várias regiões abrangidas, Portugal e Espanha acordam na viabilização conjunta das ligações transfronteiriças nos seguintes termos:

  • Serão estabelecidas e consideradas 4 (quatro) ligações para a materialização dos corredores: Porto-Vigo, Aveiro-Salamanca, Lisboa-Madrid e Faro-Huelva.
Mapa distribuído na cimeira Luso-Espanhola de 2003
Mapa distribuído na cimeira Luso-Espanhola de 2003
  • O desenvolvimento temporal das referidas conexões realiza-se conforme o seguinte calendário:

2009 para a ligação Porto-Vigo

2010 para a ligação Lisboa-Madrid;

2015 para a ligação Aveiro-Salamanca;

2018 a ligação Faro-Huelva será planeada em função dos resultados dos estudos a desenvolver, de forma que a ligação possa estar concluída antes desta data.

  • Estudar-se-á a viabilidade de que, com o objetivo temporal de 2015, o corredor Aveiro-Salamanca seja para tráfego misto, definindo-se, oportunamente, o ponto de união das duas redes nacionais, prestando-se especial atenção à interoperabilidade.
  • Os estudos a desenvolver por cada um dos Países serão coordenados pela Comissão Mista (a nomear pelos dois Governos), que servirá de garante à obtenção de traçados que permitam tempos-objetivo de percurso entre “Lisboa e Madrid” e “Porto e Madrid” da ordem das 2 horas e 45 minutos, pelo que as velocidades de traçado serão ajustadas à obtenção destes tempos de viagem.

 

Dos compromissos assumidos, restam os Estudos elaborados até à extinção da RAVE, em 2011 e nada mais….

De tudo isto, resta também uma enorme frustração, para todos os que acreditaram e trabalharam para o futuro do modo ferroviário em Portugal. E muitos foram.

Entretanto, o investimento na ferrovia não parou e muitas obras foram sendo feitas e continuam a ser, sem obedecer a qualquer Plano ou estratégia integradora, sem objetivo credível, que não seja o do anúncio dessas mesmas obras.

Os exemplos são vários, desde a modernização da ligação Lisboa- Porto à modernização e eletrificação da ligação Lisboa-Évora, com os resultados que são conhecidos e que, no caso desta vai prosseguindo, calma e paulatinamente, em bitola ibérica, a caminho de Badajoz.

O total despendido até hoje, na ligação Lisboa-Porto, representa mais de 50% do custo de uma nova linha, com um novo traçado, na ligação em alta velocidade, cumprindo os parâmetros da União Europeia.

A modernização feita permitiu que, em troços muito reduzidos, se tenham aumentado as velocidades máximas para 220km/h, mas a maior parte dos problemas existentes, subsistiram. Assim as velocidades médias da Linha do Norte modernizada são muito inferiores às de uma Linha nova de alta velocidade e não têm qualquer fiabilidade.

Na definição de um Plano Nacional Ferroviário haverá que introduzir o facto de os nossos comboios, devido a uma fatalidade geográfica, para chegarem à Europa além Pirenéus, terem de passar por Espanha e pelas respetivas linhas de bitola europeia.

Portugal, quando entender construir uma rede ferroviária terá, por razões que mais não sejam que as da fatalidade geográfica, já referida, de coordenar a sua política ferroviária com Espanha para que as nossas linhas internacionais tenham continuidade para lá da fronteira.

Neste contexto é preciso considerar:

  • Os compromissos assumidos na Cimeira da Figueira da Foz;
  • A Espanha já ter construído a maior parte da Ligação Badajoz-Madrid, apta para tráfego de passageiros e mercadorias, que não é rentável sem a ligação a Lisboa
  • A Ligação Lisboa-Madrid ser mais importante para Espanha do que para Portugal,
  • A ligação Aveiro-Salamanca ser mais importante para Portugal do que para Espanha.

Neste contexto se Portugal não cumprir os seus compromissos na ligação a Badajoz, arrisca-se a que a Espanha adote uma atitude semelhante e não cumpra os seus na ligação de Salamanca a Vilar Formoso.

A consequência deste desacerto estratégico é Portugal estar hoje mais isolado do que nunca da Europa, no modo de transporte ferroviário.

No médio prazo, quando a Espanha concretizar o objetivo de mudar a sua rede para a bitola europeia, Portugal ficará completamente isolado da Europa, uma ilha ferroviária, tal como já referido em trabalho apresentado pela Direção da ADFER, em 2013, sendo então Presidente o Professor Engenheiro Mário Lopes.

Aos dias de hoje, nenhum sistema de transporte ferroviário europeu pode ser competitivo, sem que sejam removidas todas as barreiras técnicas à circulação de comboios e à sua interoperabilidade.

Este Congresso tem o privilégio de se realizar em simultâneo com o anúncio da profunda alteração de todos os parâmetros em que assentou o desenvolvimento da ferrovia na Comunidade Europeia, nos últimos 40 anos, conforme já elencados e que, em Portugal, eram tidos por adquiridos.

Tivemos, há dias, o anúncio feito pelo senhor Ministro das Infraestruturas da chegada da Modernização da ferrovia às Caldas da Rainha, seguido do anúncio do lançamento do Projeto da reposição da circulação ferroviária na Ligação Pocinho-Barca d´Alva, com obra orçamentada em 75 M € e duração prevista de 7 anos, para servir um tráfego estimado de 200 passageiros/dia. Perguntado pela ligação a Espanha, desativada já no século passado, terá respondido que cada Ministro trata do seu País.

Mas nada disto seria sequer relevante, não fora o senhor Primeiro-Ministro anunciar com pompa e circunstância uma ligação Lisboa-Porto, em bitola ibérica, como um novo Projeto que vai ligar duas cidades portuguesas e não duas capitais da Europa, tendo como premissa a duração de uma hora e um quarto, que é, aliás, a razão de ser deste painel.

Perguntamo-nos, com toda a legitimidade, como, por onde, quando e que financiamento.

A única resposta que o Plano Nacional Ferroviário nos dá é o seu horizonte temporal, o ano de 2050. Quanto aos outros elementos não existem definições concretas, nomeadamente, se estamos perante novo traçado ou de mais uns remendos na linha construída no século XIX.

Conforme já referi trata-se de uma alteração radical da visão política da ferrovia que deixa de ser projeto europeu, para passar a ser um projeto nacional, completamente fechado em si mesmo e não interoperável com a restante rede europeia.

Parece-me oportuno e muito atual, apresentar o mapa das soluções comparadas propostas pela RAVE e pela ADFER/CIP, em 2013, em que é apresentada a entrada em Lisboa pela margem esquerda do rio Tejo.

MAPA DA LIGAÇÃO LISBOA-PORTO COM AS SOLUÇÕES RAVE E ADFER/CIP EM 2013
MAPA DA LIGAÇÃO LISBOA-PORTO COM AS SOLUÇÕES RAVE E ADFER/CIP EM 2013

Esta aproximação permite a travessia do rio, junto a Alcochete, por ponte ferroviária até à margem norte, para entrada na Gare do Oriente, no respeitante a passageiros.

Sem querer, em sede deste Congresso entrar na discussão da localização do NAL, não quero deixar de afirmar que a localização na atual Carreira de Tiro de Alcochete, preenche, como mais nenhuma, os requisitos necessários a uma estratégia otimizada no que respeita à rede ferroviária, nas suas diferentes vertentes nacionais e na ligação à vizinha Espanha, bem como à zona de captação de tráfego para o aeroporto.

Sem mais me alongar fica para, em sede própria, apresentar de forma estruturada as razões que assistem a esta opção.

Aliás e também aqui a abundância de estudos e de pareceres técnicos só é suplantada pela total incapacidade de decisão política nos últimos 50 anos, relativamente ao Projeto do NAL.

O GNAL, criado pelo Decreto-Lei 48902 de 08 de março de 1969, vem a ser extinto em 1974, tendo durado pouco mais de 5 anos.

É chegada a hora de decidir!

Resumindo tudo o que foi dito, fica a esperança de que Portugal tenha ambição suficiente para não continuar a ser a ilha ferroviária da Europa, com tudo o que isso representa de retrocesso no processo de integração e de completo isolamento, pouco coerente com todo o trabalho desenvolvido por tantos responsáveis políticos, entre os quais se destaca o nosso atual Primeiro-Ministro, Dr. António Costa.

Termino, deixando um apelo para que se encontre uma solução coerente com aquilo que tem sido o percurso de Portugal, nas últimas três gerações, de que muitos de nós nos orgulhamos.

Há que saber continuar!

30 de Novembro de 2022
Manuel Cidade Moura



Assista à 5ª Sessão do Congresso
“Ligação Porto-Lisboa em uma hora e um quarto – Como? Por onde? Quando? Que financiamento?”

sessão 05