Que investimento ferroviário nos próximos anos?

Que investimento ferroviário nos próximos anos?

Vantagens competitivas, escala mínima, conceção e programação dos investimentos

São bem conhecidas de todos as grandes vantagens do transporte ferroviário: a elevada eficiência energética (por virtude do baixo atrito roda-carril), a capacidade de movimentação de cargas pesadas e de grandes fluxos de passageiros, e um nível muito mais elevado de segurança. É também sabido que a eletrificação deste transporte ainda ajuda ao pleno aproveitamento das suas virtualidades.

Deste conjunto simples de afirmações decorre um quase unânime apelo dos nossos dirigentes políticos ao aumento do investimento na ferrovia e à transferência para este modo de muita da mobilidade de passageiros e mercadorias no nosso país.

Mas as coisas não são tão simples. O transporte ferroviário tem níveis mínimos de investimento que são bastante elevados, e os seus custos fixos representam sempre uma parte muito importante dos custos totais, pelo que é uma opção que só faz sentido mobilizar quando existem (ou fundamentadamente se esperam) níveis significativos de procura. Essa procura está associada, para os passageiros, à densidade habitacional e de emprego, e para as mercadorias à concentração da geração e absorção de cargas ao longo dos corredores servidos (aí se incluindo a ligação aos portos).

E há que ter presente que atender bem essa procura num mercado em competição com outros modos implica, além da capacidade, a regularidade na oferta anunciada e a pontualidade na execução dos serviços anunciados. Só com estes atributos se conseguirá ter algum sucesso face á flexibilidade e acesso territorial completo do modo rodoviário. Caso contrário tratar-se-á de investimentos perdidos, dinheiro deitado à rua.

A vantagem da ferrovia no plano ambiental já foi muito maior que no presente porque a sua eletrificação foi viável muito antes da do transporte rodoviário, mas tem vindo a diminuir face aos progressos recentes do lado rodoviário. Essa vantagem ainda existe, já que temos hoje mais de 60% da ferrovia eletrificada, sendo nessa parte que ocorre a larga maioria dos fluxos; mas as próximas 2 a 3 décadas vão trazer a eletrificação massiva do transporte rodoviário, e com ela a redução desta vantagem da ferrovia. Os argumentos justificativos do investimento ferroviário terão por isso de ser outros.

A infraestrutura ferroviária atual sofre de diferentes insuficiências em várias secções da rede, nuns casos com degradação da própria estrutura, noutros com saturação de capacidade e ou com soluções de sinalização antiquadas, noutros ainda com geometria muito penalizante dos serviços de mercadorias.

Sendo o transporte ferroviário um sistema complexo e interdependente, o investimento de requalificação na infraestrutura tem de ser concebido por itinerários – para permitir maiores ganhos de eficiência nos serviços – tendo em consideração todos os seus aspetos, como sejam a robustez da estrutura, os alinhamentos, a eletrificação, os estrangulamentos de capacidade em nós, linhas de resguardo para comboios longos de mercadorias, sinalização, etc.

Mas pelo contrário o planeamento e execução desses investimentos devem ser feitos de forma programada por especialidades, no total da rede abrangida, por forma a promover a utilização eficiente de recursos muito valiosos (maquinaria e pessoal técnico) em cada uma dessas especialidades. A intermitência nestes investimentos é fortemente destruidora do capital existente e inibidora da sua reconstituição.

O que diz o Plano Nacional de Infraestruturas (PNI) 2030

O PNI2030 tal como publicado, apresentando os investimentos troço a troço e em especialidades separadas nas várias linhas, não permite avaliar se os aspetos acima referidos como decisivos para uma boa conceção e organização dos trabalhos de revitalização da rede ferroviária foram tidos em conta. A dependência dos fundos estruturais e a “ginástica” habitual na gestão dos mesmos e na sua repartição por regiões leva a recear que tal não tenha acontecido na fase da conceção ou não venha a ser respeitado na fase da execução. Espero estar enganado…

Para além disso, pode sempre discutir-se se um Plano Nacional de Investimentos é ou não coerente e inclui ou não os itens fundamentais.

No que respeita à parte da ferrovia no PNI2030 quero apenas salientar o que me parece ser um caso de incoerência por sobreposição de investimentos com o mesmo objetivo, e uma omissão que poderia talvez ser corrigida com a reafectação dos recursos que a recuperação de coerência libertaria.
Refiro-me ao paradoxo aparente de, por um lado estar em fase adiantada de preparação a obra de criação da linha circular do Metropolitano de Lisboa (integrada no Ferrovia 2020), com prolongamento da linha amarela a partir do Rato e sua amarração à linha verde na Cais do Sodré – com o principal objetivo anunciado de dar ligação direta ao centro da cidade para os passageiros da linha ferroviária de Cascais, e a inclusão no PNI2030 do projeto de ligação direta desta linha à linha de cintura na zona de Alcântara, exatamente com mesmo objetivo. Dados os elevadíssimos custos das obras da linha circular e os graves transtornos que as suas obras vão causar, poder-se-ia questionar se não seria melhor fazer apenas a ligação da linha de Cascais à linha de cintura tal como previsto no PNI2030, abandonando o projeto da linha circular do metropolitano. Mas pode ser que este já seja irreversível face aos compromissos assumidos.  

Nesse caso, porque fazer o outro investimento de ligação das linhas de Cascais e da Cintura? Não seria preferível desencravar a linha do Oeste (que hoje não tem como prestar um serviço de qualidade ao desaguar na Linha de Sintra sem capacidade para receber os fluxos que aquela poderia gerar), prolongando-a até à linha de cintura em Lisboa através do concelho de Loures que hoje está fora da rede?

Abertura do mercado à concorrência no transporte ferroviário de passageiros

Ainda que vá ocorrer de forma gradual, esta abertura vai abranger todos os segmentos do mercado. Para além da vantagem de promoção de soluções mais eficientes, este novo enquadramento vai atribuir um papel fundamental às autoridades de transportes na definição e contratualização dos serviços que devem ser oferecidos às populações, nos casos das aglomerações urbanas em que se aplica o conceito de serviço público, e na capacidade de impor ao(s) operador(es) a sua prestação como determinado nesses contratos, o que não tem sucedido com o operador público.

Nos segmentos (inter-regionais e de longo curso) abertos à livre concorrência haverá lugar à inovação no processo de competição pelos clientes e à capacidade de investimento (em material circulante) privado quando ele é vital para a prestação do serviço como julgado necessário para atrair a procura, e não apenas quando é autorizado pelo Ministério das Finanças.

Obviamente, a baixa densidade populacional em boa parte do território só será suficiente para justificar o investimento privado não subsidiado numa parte da rede. Mas pode aqui suceder – como tem sucedido noutros setores – que os melhores padrões de serviço oferecidos nos novos serviços sejam suficientemente melhores para fazer aumentar as expetativas e exigências dos cidadãos noutras partes do território. Ou seja, mesmo as regiões que não recebam esses serviços em mercado livre podem vir a beneficiar da sua existência nas regiões mais densas, ainda que por emulação e com algum atraso. Algo semelhante se tem passado em múltiplos setores da economia e em muitas regiões do mundo.

José Manuel Viegas
Professor catedrático (aposentado) do IST 
ex-Secretário-geral do Fórum Internacional dos Transportes (OCDE)

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