A nova linha AV Lisboa-Porto, o “Espaço Canal” do Carregado e o Novo Aeroporto de Lisboa
O traçado da nova linha AV Lisboa – Porto – Braga que foi definido pela IP considera a aproximação e amarração a Lisboa num novo terminal a construir no lado poente da estação do Oriente.
Esta aproximação não será feita em infraestrutura nova e dedicada, mas através da atual infraestrutura da linha do Norte no troço Carregado – Lisboa onde passarão também a circular os comboios de AV em justaposição com os tráfegos convencionais existentes da Linha do Norte, isto é, com os serviços suburbanos, regionais, de longo curso e também de mercadorias.
Para isso, considera a IP que as capacidades necessárias para este efeito serão satisfeitas apenas pela quadruplicação do troço Alverca – Castanheira do Ribatejo, ficando assim assegurado as quatro vias de circulação em todo o troço Oriente – Carregado.
Esta opção da IP compromete incontornavelmente a qualidade dos futuros serviços de AV retirando-lhe significativo valor económico e comprometendo, por via disso, a sustentabilidade do seu futuro modelo de negócio fundamentalmente por razões de notórios défices de capacidade da infraestrutura.
Vejamos então as condições atuais de capacidades no troço Oriente – Carregado declaradas pela IP em 2018 e expressas em “% de utilização da capacidade disponível“:
a) Troço Oriente – Alverca (via quádrupla) com a seguinte estrutura de tráfegos: 52% suburbanos, 18% regionais e 23 % longo curso. % de utilização – 77 %
b) Troço Alverca – C. Ribatejo (via dupla) com a seguinte estrutura de tráfegos: 48% suburbanos, 20% regionais, 25% longo curso. % de utilização – 85%.
c) Troço C. Ribatejo – Carregado (via quádrupla) com a seguinte estrutura de tráfegos: 48%suburbanos, 20% regionais, 25% longo curso. % de utilização – 79 %.
Os comboios de mercadorias representam no total do troço 5–6 % dos comboios.
Em complemento, se atendermos à estrutura e frequências dos serviços ascendentes de longo curso e regionais na Linha do Norte neste troço (que circulam nas vias do lado nascente) e na janela horária das 6h00 às 10h00 constatamos a sequência mínima de 16 minutos com a sequencia média de 30 minutos, com 4 comboios AP e 3 comboios IC.
Este “screen shot” de exploração é bem revelador da intensidade e diversidade de tipologias de comboios longo curso já hoje existentes na Linha do Norte entre o Oriente e o Carregado e é sobre este “mosaico” que a IP pretende sobrepor todo o novo serviço AV Lisboa – Porto – Braga.
De facto, é ciência da experiência feita que em exploração de redes ou de linhas ferroviárias as capacidades utilizadas próximas dos 75–80 % da capacidade disponível, conduzem a situações de congestionamento recorrentes, suscitando instabilidade horária com degradação da regularidade e pontualidade generalizada dos serviços.
É assim um facto, indiscutível e notório, que o troço da Linha do Norte Oriente – Carregado suporta já um volume elevado de circulações com um muito relevante consumo da capacidade oferecida, num patamar próximo do congestionamento.
Não será seguramente a simples quadruplicação Alverca-C. Ribatejo (ainda com muito sérias condicionalidades urbanísticas) que virá conferir as capacidades adicionais necessárias para inverter a situação.
Para simples análise comparada mencionamos alguns indicadores de capacidade utilizada de linhas principais da rede espanhola na região de Madrid:
Atocha – Chamartin (391 cºs/dia): 65 %
Atocha - Pinar de las Rozas (191 cºs/dia): 41 %
Atocha – San Fernando Hen, (244 cºs/dia): 39 %
Indicadores que comparam com os cerca de 380 cºs/dia (sem marchas de serviço) que circulam no troço Oriente – Alverca.
Esta abordagem de análise é também sustentada pela normativa UIC – 406 que consagra um método standard, a nível nacional e Europeu, de cálculo e avaliação de capacidades de linhas e nós ferroviários, com vista ao planeamento harmonizado de horários eficientes e com elevada pontualidade nos principais corredores da rede transeuropeia.
Na sua classificação de valores da capacidade consumida dispõe esta normativa que a banda entre os 80% e os 100 % corresponde a níveis de elevada utilização de capacidade e reduzida capacidade disponível, enquanto que para valores inferiores a 80 % “…correspondem a menor utilização de taxas de capacidade e a suficiente quantidade de capacidade disponível …”.
Ficará assim bem evidente e sustentado que integrar o troço da Linha do Norte Oriente – Carregado no projeto da nova ligação de AV Lisboa-Porto-Braga, como pretende a IP, é objetivamente não só abastardar totalmente a qualidade deste serviço destruindo-lhe o seu valor, mas também de todos os serviços convencionais já em exploração neste corredor.
Vem a propósito igualmente relevar que existirá ainda maior destruição de capacidade útil por efeito do atravessamento (cisaillement) das atuais quatro vias de saída norte da estação do Oriente pelos comboios AV (que circularão nas duas vias do lado nascente) dado que o seu novo terminal a construir será localizado no lado poente da estação.
Também se atendermos como mera amostra à oferta atual dos serviços AP e IC a partir da estação do Oriente, no período das 6h00 às 10h00, verificamos uma sequência média de 30 minutos com uma frequência mínima de 16 minutos, evidenciando notórios constrangimentos na alocação de mais canais AV.
Por tudo quanto já foi acima referido e ainda atendendo à condicionalidade inevitável da liberalização do produto AV com a entrada no mercado de mais um se não dois operadores como já acontece em Espanha, Itália e França, é nas faixas horárias de maior valor, como a acima referenciada, que se vão concentrar as disputas de canais horários e os contornos dos respetivos acordos-quadro com os operadores.
Nesta alocação de canais aos operadores devem seguir-se os princípios da equidade e imporá medidas regulatórias não discriminatórias de equivalência relativas ao seu valor de mercado.
Dito de outro modo: as faixas horárias de maior valor comercial serão aquelas onde se concentrarão mais canais horários pretendidos e em que a consequente pressão sobre as capacidades se acentuará.
Sendo este mercado de concorrência dos serviços AV, de características de padrão tipicamente oligopolista como se verifica noutras geografias, diz-nos a experiência já vencida que o operador incumbente procura sempre ocupar antecipadamente mais canais de modo a alcançar os maiores volumes de tráfego possíveis e daí as respetivas vantagens.
Será por isso seguro que vamos assistir também à CP a reagir de igual modo por lançamento adiantado de mais serviços e é neste sentido que já anunciou a vontade de adquirir uma frota de 16 unidades AV em 2025. Esta frota, associada aos tempos de viagem enunciados de 1H-15M que compara com as 10 unidades pendulares e tempos de 2h50m, indicia claramente a intenção do incumbente de vir a dispor de condições para ocupar ainda mais canais por antecipação.
Assim e em síntese, a conciliação de todos estes requisitos com o último troço da Linha AV Lisboa – Porto sobreposto ao atual Oriente – Carregado é notoriamente uma impossibilidade material, na ótica da exploração ferroviária.
Cabe aqui aludir, por mera referência, que a Comissão da Concorrência espanhola (CNMC) notava em 2019, antes da liberalização da AV, que a capacidade utilizada nas ligações interurbanas nestas linhas era de 24 % (informação da ADIF).
E em 2024 a CNMC declara que “…. a capacidade excedentária da rede AV facilitou a entrada de novos concorrentes nos corredores principais …”
Ora, é neste contexto de exploração e em que a IP reafirma a sua decisão de consolidar o itinerário da nova Linha AV Lisboa – Porto, por via da utilização do atual traçado da Linha do Norte entre o novo terminal do Oriente e o Carregado, que surge a tripla decisão política de localizar o NAL em Alcochete, de executar a ligação AV Lisboa – Madrid e de lançar uma nova travessia de prioridade ferroviária do Tejo (TTT).
Perante esta decisão, a IP vem então explicitar surpreendentemente que a ligação da Linha AV Lisboa – Porto ao NAL já está prevista por ramal de bifurcação naquela linha, na proximidade do Carregado.
Esta solução, na ótica da exploração, arrasta então duas possibilidades de acesso ao NAL: (1) pelos próprios comboios AV; (2) pelos comboios do tipo regional, em navette, entre o NAL e uma estação de ligação no Carregado a construir.
O primeiro cenário obrigará a um modelo de exploração com duas famílias: Porto – Oriente e Porto – NAL, gerando notoriamente maiores custos financeiros para o modelo de negócio por via de maiores frotas e menores eficiências na sua operação (menores load factors / UME).
Fragilizam-se seriamente os modelos de negócio dos operadores por via do CAPEX e também do OPEX e coloca-se novamente a ameaça das subvenções orçamentais de garantia de equilíbrio financeiro dos operadores (OSP? ….) num produto eminentemente comercial e supostamente economicamente sustentável em contexto de mercado liberalizado.
Pelo outro lado, o segundo cenário requere roturas de carga no acesso ao NAL aumentando os custos generalizados para o segmento dos clientes do transporte aéreo, não despicientes de todo para a mobilidade de acesso aeroportuário.
Esta perspetiva de análise conjugada com a tripla decisão do Governo torna imperativo, no nosso entendimento, uma urgente reapreciação do traçado da nova Linha AV Lisboa – Porto, numa ótica de traçado alternativo pela margem esquerda do Tejo que garanta a ligação direta ao NAL e continuidade pela TTT com amarração final no terminal do Oriente.
Torna-se por consequência absolutamente indispensável que esta reapreciação tome em consideração não só critérios de engenharia de traçado, de construção e de impacto ambiental, mas, em precedência obrigatória, também critérios de exploração e de modelo de negócio do “produto” AV.
A não ser assim, o elevado risco de se materializarem soluções infraestruturais desajustadas e completamente ineficientes será uma certeza, com consequências muito severas para o custo-benefício e sustentabilidade da AV ferroviária em Portugal no longo prazo.
Em conveniente articulação deverá também ser estudada a viabilidade do acesso direto da nova Linha Lisboa – Madrid e sua continuidade ao Oriente pela TTT por ser condição primeira da atratividade do novo aeroporto para toda a bacia da região do sudoeste ibérico.
É assim, no nosso entender, imperativo que esta condição compare com o aeroporto de Madrid (Barajas) que disporá de ligação direta aos três principais itinerários AV (Nordeste, Levante e Sul) por via da ligação em túnel das estações centrais de Atocha e Chamartin.
Junho de 2024
E. Martins de Brito
Engenheiro / Membro do Conselho Estratégico da ADFERSIT